segunda-feira, 1 de março de 2010

O luxo rompe as fronteiras

Conheça a mastige, a tendência que une a extrema sofisticação com a produção em massa

Por Roberta Locatello | 26.08.2005


Revista EXAME -


Na nova loja da Daslu, templo do luxo erguido em São Paulo, grifes tradicionais como Louis Vuitton, Prada, Gucci e Armani convivem com típicas representantes do consumo da classe média, como Gap, Banana Republic, Iódice, Forum, Triton e Richards. Pode-se também encontrar um caríssimo tailleur Chanel, a mais prestigiada das marcas de alta-costura, exposto praticamente ao lado de cadeirinhas de palha para decoração, vendidas a 45 reais, e de camisetas cujo preço não passa de 100 reais. A Daslu reproduz um fenômeno que vem ocorrendo em todo o mundo -- a diluição gradativa dos limites entre a sofisticação extrema e o consumo de massa. É o que vem sendo chamado de mastige, um neologismo surgido da união do prefixo mass com o sufixo prestige, e que poderia ser traduzido como prestígio para as massas. Em meio a esse movimento, tradicionais e seculares grifes se "democratizam", produzindo itens acessíveis ao bolso de camadas da classe média. Marcas de consumo de massas, por sua vez, tentam fazer incursões pelo rentável mercado do luxo. É a síntese de dois mundos do consumo.

As montadoras são adeptas de primeira hora do mastige. O A3 e o A4, por exemplo, levaram a montadora alemã Audi à classe média. As séries 1 e 3 fizeram o mesmo pela BMW. São produtos talhados especialmente para aqueles que desejavam mas não podiam consumir tais marcas. O mastige abre o leque de consumo e permite que mais gente desfrute da experiência da marca. Gera conhecimento e desejo, numa corrente que, no final, resulta em mais vendas. Isso sem que os lucros fiquem comprometidos. Produtos mastige custam até três vezes mais do que similares que não levam a assinatura de uma grife de luxo. Pesquisa da consultoria Boston Consulting Group mostra que esse novo consumidor do luxo é um comprador eventual, disposto a pagar mais do que seria recomendável por produtos que lhe garantam altas doses de conforto, segurança ou emoção. É graças a esses novos consumidores que empresas como Louis Vuitton, Christian Dior e Dolce & Gabbana, entre outras, vêm acumulando dígitos duplos de crescimento a cada ano. A rede americana Starbucks, com seus cafés especiais, aumentou as vendas em 30% no ano passado.

Ao mesmo tempo, fabricantes de alguns produtos vistos há décadas como populares tentam conquistar o coração e o bolso dos consumidores de alto poder aquisitivo. Foi com essa estratégia que as sandálias Havaianas, da Alpargatas, conquistaram a classe média alta no Brasil, os clientes da Bloomingdale's nova-iorquina e até dos clubes de lojas reservadas no Japão, onde os modelos oferecidos são cravejados de cristais Swarovski e custam até 236 dólares. No Brasil, o exemplo mais recente desse movimento é a coleção de roupas assinada pelo estilista Walter Rodrigues, um ícone da alta-costura nacional, lançada em maio passado pela rede de varejo C&A. Rodrigues desenhou 40 modelos para a C&A, num total de 150 000 peças. "É mais do que produzi em 13 anos de carreira", afirma ele. A idéia foi um sucesso e fez com que a rede repetisse a dose: em junho, lançou a coleção das estilistas Paula Raia e Fernanda de Goeye, da butique paulista Raia de Goeye. Da mesma forma, a rede de varejo H&M, presente em 20 países, lançou uma coleção assinada pela alma criativa da Chanel, o estilista Karl Lagerfeld. Outra, com 35 itens, foi encomendada à estilista Stella McCartney. Em ambos os casos, foi adotada a estratégia batizada de massclusivity, ou exclusividade massificada, se é que isso é possível. O objetivo é chamar a atenção da clientela com um número limitado de peças com assinaturas glamourosas, vendidas por um prazo determinado a preços razoáveis. O efeito tem sido a formação de filas de consumidores, enlouquecidos com a possibilidade de levar para casa algo especial.

A fórmula que mistura glamour e preços acessíveis está na origem do sucesso da rede de varejo espanhola Zara, presente em mais de 700 países, entre eles o Brasil. Seu fundador e presidente, o espanhol Armando Ortega Gaona, percebeu que ao oferecer as duas coisas ao mesmo tempo estaria preenchendo uma necessidade emocional de determinada categoria de clientes. "Chamamos tudo isso de democratização do luxo", diz Michael Silverstein, sócio-diretor da Boston Consulting Group e um estudioso do tema. "O mercado está se bifurcando. Haverá vencedores entre os produtos no topo e na base da pirâmide e morte aos que ficarem no meio." Segundo ele, o consumidor de classe média é inteligente e individualista. Compra como se estivesse com uma calculadora na mão, procurando preços baixos naqui lo que não percebe valor e pagando caro por produtos que lhe garantem satisfação. Age também como verdadeiro apóstolo das marcas. "São eles que valorizam a história da marca, romanceiam sua tradição e patrimônio e colam a elas virtudes emocionais e mesmo espirituais", afirma o consultor. "Compõem o paraíso dos profissionais de marketing." Com consumidores eventuais e produtos diferenciados, o mercado só faz crescer. Pesquisa do Boston Consulting Group com 15 empresas americanas que adotaram o mastige mostra que a margem de crescimento anual de vendas atingiu 18%, bem acima da média de 5%.

Essa tendência favoreceu a proliferação das marcas de luxo em segmentos variados. A Montblanc, por exemplo, saiu das canetas para pastas e bolsas de couro, relógios, abotoaduras e acessórios para escritório. A área de hotéis atraiu nomes do mundo da moda. A Diesel abriu o seu em Miami, com diárias a partir de 135 dólares. "São empresas que podem crescer e lançar seus tentáculos horizontalmente apenas pela força de suas marcas", diz o consultor Carlos Ferreirinha, da MCF Fashion. Segundo ele, o fenômeno do mastige, ao mesmo tempo que abre oportunidades, coloca um desafio adicional às empresas de alto luxo. "Como a base olha para cima e tenta imitá-la e o topo quer a maior distância possível, as grifes de luxo tiveram de aumentar suas ofertas de produtos caríssimos", diz Ferreirinha. Assim, com agilidade cada vez maior, as empresas lançam produtos de preços estratosféricos, como a Ferrari Super América, de 2 milhões de dólares, ou o colar de diamantes de 1 milhão de dólares produzido pela H.Stern e usado pela atriz Angelina Jolie na última festa do Oscar.

Tudo isso se tornou possível porque os ícones do luxo reinventaram seu modelo de negócios. As antigas empresas familiares e maisons com produção artesanal passaram a ser conglomerados mundiais. Também conseguiram apropriar-se de técnicas do consumo de massa, como a publicidade e os grandes investimentos em lançamentos, ao mesmo tempo que mantiveram a sensação de exclusividade e a produção de itens artesanais de alta qualidade. Souberam esparramar produtos por todo o planeta, mas continuaram fazendo com que seus compradores se sentissem únicos. Exploraram o que o filósofo francês Gilles Lipovetsky, que esteve recentemente no Brasil, definiu como sendo uma necessidade do mundo atual: o luxo fascina porque preenche uma busca pela sensação de longevidade numa sociedade em que tudo é descartável e passageiro.

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